Então você resolveu criar uma newsletter?
Pois é, há tempos andava com vontade de fazer uma (e a prima Tali Grass me incentivou). Gosto da proposta.
Mais uma newsletter...
Algum problema?
Já existem tantas por aí.
Mas ainda não existia a minha.
Tudo bem, tudo bem. Pelo menos essa ideia de começar com um diálogo parece bem original.
Olha, na verdade, já que não sabia o que fazer pra começar, resolvi usar a newsletter do Lawrence Block como inspiração. Adoro o Block (mas não o writer’s block, haha).
“Inspiração”, sei... e um trocadilho pra piorar.
Não seja tão implicante. Toda pessoa que escreve imita outras em algum momento. Pra começo de conversa, o que é “originalidade” afinal? E quem não gosta de um trocadilho?
Ok. Então fale sobre “Cartas Perigosas”.
Aqui pretendo compartilhar contos, trechos de trabalhos meus (traduções, prefácios, artigos) ou textos completos mesmo, escritos sobre cinema, música... Quem sabe até alguma história em quadrinhos?
Você disse cinema? Quer dizer que também vai publicar os meus trabalhos?
Como assim? Nós somos a mesma pessoa.
Não, eu sou o César Almeida, você é o Cesar Alcázar.
Esse papo acabou de ficar muito estranho... Mas, sim, pretendo falar tanto dos trabalhos de César Almeida, autor de não-ficção, quanto dos meus trabalhos como autor de ficção.
Fico feliz pelo crédito. Sempre bom dar nome aos bois.
Não me fala em boi, já chega o gado incomodando por aí. Não se tem uma semana de paz nesse país...
E do livro novo, não vai falar?
Calma, tudo a seu tempo. Por enquanto, posso falar que o livro está em fase de revisão, é um mistério fantástico, foi inspirado em canções do Tom Waits, tem uma ambientação de época ao estilo da Megan Abbott, e começa assim: “Percebi que não estava mais sozinho no escritório quando vi o reflexo da mulher nos vidros da janela.”
Todo misterioso ele.
Muito.
E qual vai ser a periodicidade dessa newsletter?
A princípio, mensal. De vez em quando talvez apareça alguma carta extra.
Muito bem, muito bem. Então chega de conversa e mãos à obra, escritor!
Deixa comigo.
Quer adquirir meus livros? Assistir entrevistas? Acompanhar minhas redes? Só clicar aqui.
Nessa primeira edição de “Cartas Perigosas”, compartilho com vocês um conto escrito há mais de dez anos e nunca publicado oficialmente. A história é inspirada em um acontecimento real testemunhado e depois ficcionalizado pelo escritor Joseph Conrad (aqui transformado em participante do evento). Espero que gostem.
Um Duelo em Marselha
Cesar Alcázar
Ninguém percebeu o passo apressado do velho Dubois em meio ao tumulto na região portuária de Marselha. Mesmo mancando, o homem, que vestia um casaco vermelho surrado, demonstrava rapidez impressionante para uma pessoa de sua idade. Quando chegou à taverna de Bouche Dorée, suspirou aliviado.
Dubois, com a respiração ofegante, cambaleou entre as mesas e foi logo sentando diante do balcão. Bouche sorriu para o amigo, exibindo sua coleção de dentes de ouro emoldurada por um vasto bigode branco. Dubois mal podia falar, e gesticulou para o taverneiro lhe trazer uma bebida.
– O que foi, Dubois? Está fugindo dos soldados outra vez? – indagou o homem de sorriso dourado enquanto enchia o caneco de rum.
– Acabei de presenciar algo terrível na frente do Forte Saint-Jean.
O velho Dubois sorveu um longo gole do rum para aumentar o suspense. Porém, Bouche não parecia estar muito interessado na novidade que ele tinha para contar.
– Lembra-se de Dupont e Fournier? – Dubois perguntou tentando despertar a curiosidade do amigo.
– Sim. Eram oficiais Hussardos. Devotaram as vidas a um duelo sem fim. Mas, isso é uma história muito antiga, do tempo de nossos pais.
– Pois eu testemunhei um duelo como aqueles de Dupont e Fournier há cerca de uma hora.
– Um duelo?
– Com pistolas!
– Como aconteceu?
– Eu estava perto do Forte quando ouvi o burburinho. Um jovem do leste chamado Józef, bem jovem mesmo, deve ter uns dezoito anos, havia desafiado um certo capitão americano de nome Blunt para um duelo até a morte.
– Marinheiros?
– Dizem que eles contrabandeavam armas para os carlistas.
– Você sabe o motivo da luta? Mulheres? Dinheiro? Algo mais?
– E por que mais os homens se matam além de mulheres e dinheiro?
Dubois silenciou por alguns instantes para molhar a garganta com o rum. Depois, continuou a narrativa:
– Doña Rita... – suspirou o velho – Ela foi a causa. Uma espanhola que andava com eles. Eu mesmo teria matado por aquela mulher. Depois de encerrada a troca de balas, um marujo me contou o que aconteceu. O rapaz Józef, deve ser russo ou algo parecido, apaixonou-se por Doña Rita e ela o convenceu a se juntar aos contrabandistas. Józef é um ótimo marinheiro, apesar da pouca idade. No entanto, a mulher estava com o tal Blunt. Consta que ela e o rapaz tentaram fugir, mas o capitão não permitiu. Ou ela não quis deixar o amante original, não sei bem. Sei que Józef, menino de coragem, desafiou o americano. Foi neste ponto que comecei a acompanhar a tragédia...
– Pelo jeito o garoto morreu.
– Deixe-me terminar.
– Sim, sim. Prossiga, velho poeta – Bouche ordenou em tom irônico.
– Bem, como já disse, ouvi a agitação e fui até lá para ver o que estava acontecendo. Os dois homens se encontravam de costas um para o outro. Iriam duelar pelo Code Duello irlandês, embora não tivessem acompanhantes nem juízes. Ainda que fossem salteadores, deveriam ser homens honrados.
– Ninguém tentou impedi-los?
– Não. E até vi alguns guardas assistindo a tudo. Duelos são ilegais, mas você sabe como o povo gosta de sangue.
– Abutres miseráveis.
– Então, eles começaram: deram quinze passos em direções opostas. Acho que todos os presentes confiavam na perícia dos atiradores, pois ninguém arredou pé. Nenhum dos dois trapaceou. Deram meia volta ao mesmo tempo e atiraram. Não foi possível sequer ouvir dois estouros, tal sincronia dos tiros. Quando percebemos, os dois homens estavam no chão e uma nuvem de fumaça pairava sobre os corpos.
– Os dois tombaram?
– A bala do menino Józef atingiu o ombro esquerdo do capitão. Já Blunt conseguiu acertar o projétil no lado direito do peito do rapaz. Um ferimento sério. Logo, os dois foram socorridos. Vi Doña Rita acompanhar o pessoal que ajudou Józef. Procurei saber mais sobre o caso e vim correndo para cá.
Dubois bebeu mais um gole do rum e secou os lábios na manga do casaco. Com um suspiro, ele continuou:
– Pobre Józef, está muito mal. Talvez não sobreviva.
– Seria melhor para ele não sobreviver... – disse uma voz que surpreendeu os dois amigos. Outra pessoa havia entrado na taverna sem ser percebida. Era um marujo de rosto sombrio e envelhecido, com uma cicatriz enorme a atravessar o lado esquerdo da face. Ele permaneceu ali incógnito e ouviu quase toda a narração de Dubois.
– Por que você diz algo assim, senhor... – quis saber Bouche Dorée. – Tem algo contra o rapaz?
– Como podem perceber pela minha face, tive minha cota de escaramuças durante a vida. Vi e vivi coisas belas e outras terríveis. Posso afirmar que nada foi pior do que o duelo que marcou muito mais do que o meu rosto. Estive exatamente onde Józef está agora, por motivos semelhantes. Que infortúnio. Vi a história se repetir desde o início, e não fiz nada para interferir. Eu participei da mesma aventura de Józef e Blunt, contrabandeando armas para os rebeldes espanhóis. Sei que Józef ama Doña Rita de verdade. E sei também que ela embarcou em um navio com Blunt rumo à América agora há pouco. Ouçam o que digo, companheiros, nada pior do que conhecer a amargura dessa forma. Ainda mais quando ela vem acompanhada de uma bala no peito. Antes ela tivesse lhe atingido o coração culpado de tudo.
Quando reli esse conto para publicá-lo aqui, percebi que o texto estava cheio de pontos de exclamação (entre outros problemas e coisas que não faço mais, como esse estilo de condução dos diálogos). Acabei deixando só um e ainda estou achando demais. Lembrem-se do velho Elmore Leonard:
5. Mantenha os pontos de exclamação sob controle!
Conhecem as “10 Regras da Escrita de Elmore Leonard”? Outra hora falo mais sobre isso.
Você chegou até aqui? Fico muito feliz!!!
(Agora ele veio com o típico “façam o que digo, não façam o que faço...)
(Dá um desconto, cara, estou me sentindo engraçadinho hoje!)
Elaborei essa edição ouvindo o álbum “Vagabonds of the Western World”, da banda irlandesa Thin Lizzy. Tenho o CD desde os anos 90 (sim, ainda ouço CDs). Na era pré-internet, descobríamos bandas das formas mais variadas. Li sobre o Thin Lizzy pela primeira vez na revista Bizz (quem lembra?). Comprei meu primeiro CD deles, “Jailbreak”, na Toca do Disco (que ainda existe). O “Vagabonds” comprei na Stoned Discos (que não existe mais).
Também ando com a canção “Train Song”, da cantora britânica Vashti Bunyan, na cabeça. Aproveitem e confiram também a versão de meus camaradas da Strange Religion.
Muito obrigado pela atenção.
Até a próxima,
Cesar
Olha que honra estar nas primeiras linhas desta newsletter novinha em folha. Um beijo no primo Cesar Almeida, outro no escritor Cesar Alcázar. <3