Você vai me abandonar? É isso mesmo?
Não sei. Mas talvez essa fórmula de introduzir as cartas com um diálogo já tenha se esgotado. Às vezes eu me sinto como se estivesse apenas repetindo a piada. Por outro lado, muitos leitores já disseram que gostam desse nosso bate-papo, e eu mesmo adoro escrever diálogos. Agora não sei o que fazer.
Você não acha que esse é um diferencial das “Cartas Perigosas”?
Tirando a newsletter do Lawrence Block, que foi minha inspiração (o Homem-Legenda do Adão Iturrusgarai podia aparecer aqui dizendo: “que eu imitei haha”), não conheço outra que utilize esse recurso.
Por que mudar então?
Ah, sei lá. Talvez seja a tesoura do desejo.
Você vai sentir minha falta.
Sempre teremos Paris, digo, sempre teremos os números anteriores de “Cartas Perigosas”. Mas, calma, ainda não estou decidido (se alguém tiver uma sugestão, será muito bem-vinda).
E enquanto você se decide, sobre o que vai falar hoje?
No dia 14 de março, fui até a Biblioteca Pública do RS assistir a posse do escritor e amigo Tabajara Ruas na Academia Rio-Grandense de Letras. O discurso do Tabajara na ocasião foi arrasador. Ele falou sobre sua formação como escritor contando uma história de sua infância na cidade de Uruguaiana, Rio Grande do Sul, fronteira do Brasil com a Argentina.
Aos sete anos de idade, ele perdeu um primo um pouco mais velho, Isidoro, afogado nas águas do Rio Uruguai. “A morte foi o primeiro espanto da vida”, disse Tabajara. O menino ficou desaparecido por alguns dias. Militares buscaram o corpo, mas este foi encontrado por contrabandistas que atuavam no rio. A tragédia, o rio (antes símbolo de alegria e diversão que se transformou em um lugar ameaçador), os contrabandistas, os soldados, tudo isso teve um impacto definitivo na imaginação do futuro escritor.
Tabajara também falou sobre a mitologia e as lendas do Rio Uruguai, e a fascinação de viver em um lugar limítrofe, onde era preciso apenas cruzar uma ponte para chegar a uma terra curiosa em que se falava outro idioma.
Lembrei então da formação de meu próprio imaginário, e do impacto que as histórias contadas por meus antepassados tiveram em mim. Lembrei em especial de meu bisavô, João José do Santos, que durante alguns anos foi agente alfandegário na mesma fronteira e no mesmo rio mencionados por Tabajara Ruas. Cheguei a conhecer meu bisavô, falecido em 1986, e tenho algumas lembranças vívidas dele. Mais tarde, ouvi muito a respeito do seu João (vô João para os pequenos) e suas aventuras na Revolução de 1923, na Revolução de 30, e dos seus anos como agente do que viria a ser a Receita Federal. Aventuras que inspiraram o conto “Do outro lado do rio”, publicado no livro “A Culpa é da Noite”.
“Do outro lado do rio” foi uma tentativa de fazer uma espécie de Elmore Leonard gaúcho, usando uma narrativa minimalista com ares de faroeste. Embora a época e a região não sejam explicitadas no texto, procurei inserir a atmosfera do velho Rio Grande do Sul. Incluí também muitas figuras e causos de outros lugares, em especial do Alegrete, terra de minha família. E esse é o conto das “Cartas Perigosas” de hoje 😉
Do outro lado do rio
Cesar Alcázar
I
Sexta-feira pela manhã
Juan José de los Santos, agente alfandegário e responsável por patrulhar o rio, não quis saber de onde vinha a informação.
— Mas João — disse Polydoro — que diferença isso faz?
Não o chamavam de Juan. Mudara de nome para poder votar nas eleições, anos antes. Na verdade, desde que deixara seu país, em 1906, ainda criança de colo, que ninguém além da mãe o chamava pelo nome original. Mesmo assim, para si, ainda era Juan.
— A diferença, meu velho, é que eu também não quero saber o que vocês deram em troca do serviço. Sei que essas denúncias não vêm de graça.
Polydoro, amigo e colega de Juan há muito tempo, não parecia surpreso. Tirou o chapéu e passou a mão nos cabelos escassos.
— Sempre cheio de melindre — disse Polydoro. — Mas e então, o que a gente faz?
— Já que alguém deu com a língua nos dentes, é melhor se preparar.
Juan deixou sua mesa e foi até o armário na parede. Tirou de lá um fuzil Mauser 98 e uma caixa de munição. De volta à cadeira, pegou cinco cartuchos e começou a municiar a arma. Não gostava da sensação que ela causava ao toque. Aquele fuzil o acompanhava desde 1923, e tinha tantas histórias quanto alguém pode lembrar. Nenhuma delas boa.
— O tempo passa, mas tem coisa que não muda — Juan disse.
— O que foi, João?
— Nada, só pensando alto. Tenho impressão que a noite vai ser clara hoje, que nem ontem. Azar de quem quiser atravessar o rio na moita.
— Vamos só nós dois nessa tocaia?
O último cartucho foi inserido no magazine da arma e Juan fechou o ferrolho. Olhou para Polydoro e disse:
— Não. Chama o Jorge e mais dois, nunca se sabe o que pode acontecer.
*
— Padre, yo pequei — disse o homem. O interior do confessionário oferecia espaço apenas para uma pessoa ajoelhada, mas ele sentou de qualquer modo. Mal pôde ver a silhueta do padre através do arabesco na divisória de madeira, mas foi o suficiente para reconhecê-lo com base em uma foto de jornal.
— Fale, meu filho — disse o padre. — Deus está ouvindo.
O homem tossiu de leve para limpar a garganta.
— Bien, eu matei, pero solo hombres, y me deitei com muchas mujeres. También menti, roubei, enganei y fiquei borracho.
— Isso é muito grave, meu filho!
— Tengo salvación, padre?
— É isso que procura? Quer salvar sua alma?
— No lo sé. O que necessito para salvar mi alma?
— Depende.
— De que?
— Se arrepende de tudo que fez? Se arrepende de ter matado um homem?
— Más de um. Usted não pode hablar o que escuchas aqui, no?
— O segredo da confissão é sagrado, meu filho. E então, faça um exame de consciência, se arrepende de ter feito esse mal?
— En verdad, no, padre. Principalmente das mujeres. Sabes o que dicen… La carne es fraca.
Houve um silêncio que se arrastou mais do que parecia natural. Sem cerimônias, o homem deu quatro batidas na divisória do confessionário.
— Estás aí?
— Sim, sim, meu filho — o padre pareceu reencontrar as palavras. — Desculpe, é que nunca tinha ouvido algo assim. “A carne é fraca”, não é? Bem, se o senhor admite que se deitar com essas mulheres foi uma fraqueza, já é um bom começo. Vamos partir daí, depois podemos passar pra assuntos mais graves. Não conseguiu resistir à beleza, foi isso?
— Nem todas ellas eram bonitas. La beleza sólo agrada los ojos. Na cama, en el lecho, la habilidad es o que más importa.
O homem de bigode espesso, cabelos compridos envoltos por uma bandana, sentado dentro do confessionário, percebeu que o padre havia se aproximado e espiava pelas frestas do arabesco.
— Por que não está de joelhos, filho? — o padre disse, levantando a voz. — Não sabe que isso é uma falta de respeito?
— Yo nunca me ajoelho, padre.
— Nem diante de Deus? — o padre soava indignado.
— Estoy na frente de usted, no de Dios.
— É a mesma coisa.
— No es lo mismo. Dios no habría jodido el hermano del señor Mendoza.
Mais uma vez, o padre ficou em silêncio. Depois, pigarreou e falou com uma voz titubeante:
— O que disse, moço? Mendonça?
— Si, Mendoza. Y el señor Mendoza quer una solución definitiva.
— Tudo bem — disse o padre. — Eu vou embora, eu saio da cidade.
— No es esta la solución que ele quer.
O homem puxou um revólver do cinto e disparou três vezes contra a divisória, fazendo voar lascas de madeira. Os estrondos foram ensurdecedores, mas o homem já estava acostumado com isso. Ele saiu do confessionário e espiou o lugar onde o padre estava caído imóvel sobre uma poça de sangue que se espalhava. Por garantia, curvou-se sobre o corpo e encostou o cano da arma na nuca do padre. Atirou.
O sol da manhã ofuscou os olhos do homem quando ele saiu da igreja por uma porta lateral. Não havia nenhuma casa nos arredores, portanto ninguém deveria ter ouvido o barulho dos tiros. Limpou a sola dos sapatos sujas de sangue no capacho e foi embora com passos tranquilos.
II
Sexta-feira à noite
Juan conhecia o rio como o quintal de casa. Sabia onde ficavam os melhores pontos para travessia, os bancos de areia mais perigosos e os recantos escuros que podiam esconder alguém. Escolheu o local para a tocaia com a segurança de quem entende do que faz. Quatro colegas o acompanhavam na empreitada, todos com seus chapéus de aba larga, lenços no pescoço e fuzis Mauser nas mãos.
— João, gosta de pescar? — perguntou Polydoro, quebrando o silêncio.
— Não muito, meu velho — Juan disse. — Por quê?
— Eu pesco bastante. Uma vez, eu estava pescando de barco aqui nesse mesmo lugar e…
— Pronto. Aí vem uma daquelas — disse Jorge, logo atrás de Juan, começando a rir baixinho.
— Não, não — Polydoro disse. — É caso verídico! A noite caiu, e fui tomando uma cachaça da boa que o meu sogro me deu. E não é que peguei no sono? Aí, o barco deve ter se soltado. Só sei que, quando acordei, não reconheci nada na minha volta. Não tinha a mínima ideia de que lugar era aquele.
— Mas e então, o que aconteceu? — Jorge deu corda.
— Bom, aí passou uma revoada de quero-quero e vi que estava do outro lado da fronteira.
— Ué, mas por quê?
— É que eles vieram gritando quiero-quiero-quiero…
Os homens riram. Juan abriu um sorriso, mas logo pediu, aos gestos, para que todos ficassem em silêncio. Havia percebido um movimento na água.
Noite clara, de lua cheia, pouco propícia para quem quisesse atravessar o rio sem ser visto. Porém, se Polydoro não tivesse recebido a dica de um funcionário da Arango & Primos, não estariam ali. A maior parte do contrabando entrava pela própria alfândega, dissimulada entre cargas legais e não encontrada pelos alfandegários, que, na maioria das vezes, recebiam uma pequena ajuda financeira para não fazer o trabalho devido. Mas havia aqueles que não gostavam de gastar com as facilidades proporcionadas pelo dinheiro e preferiam arriscar outros caminhos para suas mercadorias.
Um barco pequeno, com dois remadores, apareceu do outro lado do rio. Juan ergueu o binóculo e viu um dos remadores parar e sinalizar para a margem leste com uma lanterna.
Os cinco homens que aguardavam no escuro em meio às árvores esperaram calados a aproximação do barco. Não demorou para que uma carroça surgisse na beira do rio, trinta metros à frente de Juan e dos companheiros. Uma carroça pequena, puxada por apenas um cavalo. O cocheiro era seu único ocupante.
O barco aterrou e os remadores começaram a descarregar os caixotes que traziam. No meio do trabalho, veio o grito.
— Soltem a mercadoria e mãos pro alto!
Sem aviso, o cocheiro puxou de uma arma e disparou. Juan e seus homens foram ao chão, e, de bruços, responderam ao fogo. O cocheiro, atingido em cheio no ombro, saltou para trás, quase rodopiando. Os dois que haviam atravessado o rio deitaram-se, mãos sobre a cabeça, gritando para que o tiroteio cessasse.
Polydoro foi o primeiro a levantar, seguido de Juan. Mais adiante, os gritos em castelhano dos remadores continuavam.
— Os dois aí, fiquem de joelhos e coloquem as mãos na testa, palmas viradas pro meu lado — disse Juan. Os contrabandistas obedeceram.
Juan abanou a fumaceira dos tiros que ainda pesava no ar. O cheiro de pólvora, misturado com o cheiro do rio, lhe provocavam uma sensação estranha, de lembrança ruim.
Enquanto Jorge e os outros cuidavam dos contrabandistas e da carroça, Polydoro e Juan foram até o cocheiro.
— Será que morreu?
— Parece que está respirando — disse Juan.
Lá da carroça, Jorge gritou:
— Quem acertou o infeliz?
— Nessa distância, só o João mesmo — Polydoro respondeu.
— Sim, fui eu.
Juan se agachou ao lado do baleado e o virou de frente. Logo atrás dele, Polydoro disse de imediato:
— Mas é o Gumercindo, filho do seu Walter Gutierrez.
*
Dora se remexeu na cama quando a luz foi acesa. Ela resmungou alguma coisa e levantou a cabeça, olhos apertados sondando o quarto.
— Que horas são?
— Tarde, Dora — disse Juan.
— Tudo bem, João? — ela perguntou, talvez notando algo estranho na voz do marido. — Como foi a batida?
— Prendemos dois. Tinham cigarro, uísque…
— Teve tiro?
— Um que outro.
— Um que outro? Como se não fosse nada! Alguém se machucou?
— Acertei um deles, mas vai viver.
— Minha Nossa Senhora.
— Cuidado, vai acordar as meninas.
Juan e Dora tinham duas filhas, a mais velha com nove anos de idade, a menor com cinco. Juan ainda queria tentar um filho homem, mas as coisas andavam difíceis. O cansaço não ajudava. Com a visita do presidente, que viria inaugurar a pedra fundamental da ponte, o departamento ficou movimentado como nunca.
— Eu só queria saber se estava tudo bem. Fico preocupada aqui sozinha.
— Eu sei. Desculpe, hoje foi um dia daqueles.
— Tudo bem mesmo então?
Dora era meio índia, sempre desconfiada. O pai dela, capataz da fazenda onde Juan trabalhara, foi quem arranjou o casamento. Como presente, o Dr. Aranha, dono da fazenda, conseguiu o trabalho de agente alfandegário para Juan. Mesmo assim, Juan não estava muito interessado em casar. Até gostava de Dora, mas também gostava de jogatina e das meninas da Dona Eusébia. Queria aproveitar a vida de solteiro. Não teve jeito. No dia marcado, o pai de Dora e mais uns três homens armados foram buscar Juan em casa para a cerimônia. Porém, isso foi em outros tempos e outra cidade.
— Estou bem. Agora vamos dormir que isso não é mais hora de gente decente ficar acordada.
*
— Canastra limpa — disse Walter Gutierrez ao adicionar um ás e um rei à sequência de copas que tinha na mesa. Começara bem aquela rodada, bateu duas vezes e ia para a terceira. A sorte dava uma revigorada em seu ânimo, deixando para trás a sensação de ter sido enganado causada pelo charuto vagabundo que estava fumando, e que encomendara como se fosse coisa fina.
— Tem gente hoje que está com um rabo do tamanho de um bonde — disse Mendonça, à frente dele na mesa.
— Não é sorte, compadre. É saber jogar.
— Falando nisso, esse charuto fedorento aí foi sorte também ou saber comprar?
Todos os ocupantes da mesa, exceto Walter, caíram na gargalhada. Walter mordeu o charuto no canto da boca e disse enquanto descartava um cinco de espadas:
— A gente veio aqui pra jogar carta ou conversa fora?
Mendonça estendeu a mão para pegar a carta do lixo e um rapaz entrou correndo na sala enfumaçada aos fundos da casa de Dona Orfila.
— Seu Gutierrez! Seu Gutierrez!
— Mas o que é isso, Brício. Onde já se viu uma gritaria dessas?
— É que aconteceu uma desgraça, seu Gutierrez.
Os homens levantaram da mesa, assustados. Walter colocou as mãos sobre os ombros do jovem.
— Mas conta logo, infeliz.
— Acertaram um balaço no Gumercindo. Ele foi pro hospital.
Mendonça, já ao lado de Walter, entrou na conversa:
— E como ele está?
— Feio, seu Mendonça. Feio.
Walter deu as costas para o garoto e sentou-se outra vez. Pegou as cartas na mão, olhou o que tinha, e as jogou com força sobre a mesa.
— Puta que o pariu — disse Walter. — E a carga?
— Parece que confiscaram tudo.
Um silêncio se abateu sobre a sala de carteado da Dona Orfila. Walter sentia que todos os olhares estavam em cima dele. Não bastasse a humilhação do charuto vagabundo, agora sofria mais este desrespeito. Seu filho, um Gutierrez legítimo, baleado, e uma carga confiscada por um lambe botas qualquer do governo. Ele tamborilou com os dedos no tampo da mesa.
— Mas é o fim da picada. Onde isso vai parar? Não existe mais respeito. Já não basta construírem essa ponte, que vai atrair de tudo pra cá, agora o pessoal da alfândega ainda mete chumbo no meu filho.
— Fazer o quê, Walter? — disse Mendonça. — Os tempos estão mudando. Antigamente se trazia o que quisesse pelo rio, hoje em dia não dá mais. Eu mesmo só trago mercadoria pela alfândega e molho a mão do pessoal lá. Sai mais caro, mas não tem risco.
— Maldito governo. Meu pai mandava e desmandava por aqui não faz muito tempo.
Walter bateu com o punho fechado na mesa, espalhando cartas e fazendo uma garrafa cair. Ele continuou:
— Não vou deixar isso assim. Vão me pagar.
— Calma, homem — disse um velho que participava da jogatina. — Não faz nenhuma bobagem de cabeça quente.
Ignorando o aviso, Walter se dirigiu ao rapaz que trouxera as notícias:
— Brício, quem foi que acertou o Gumercindo?
— Dizem que foi o tal João dos Santos.
— João dos Santos — Walter repetiu baixinho.
— Esse é mesmo um problema — disse Mendonça. — É honesto, não tem como comprar. Faz uns dois anos que pegou uma carga minha no rio.
— Então é ele mesmo quem vai pagar. Brício, traz o Venâncio aqui. Quero que ele encontre um homem bom pra esse serviço. Tem que ser um desconhecido nessas bandas, quero alguém do outro lado do rio.
O garoto já ia sair correndo quando Mendonça o segurou pelo braço.
— Não precisa — ele disse. — Eu conheço alguém.
III
Sábado após o almoço
Polydoro aproveitou que Dora não estava na sala e deu uma afrouxada no cinto. A comida na casa de Juan era de primeira e ele sempre passava da conta. Em seguida, Dora voltou trazendo a sobremesa.
— Quer arroz de leite, seu Polydoro? — Ela perguntou.
— Aceito, mas não quero a terrinha, por favor.
Dora serviu a Polydoro uma tigela de arroz com leite, sem colocar canela.
— Obrigado, Dora — disse Polydoro, reconhecendo a tigela de uma carga que ele liberara há pouco na alfândega.
— Bom, meu velho — Juan disse —, e o nosso amigo lá no hospital?
— Passei lá agora de manhã. O rapaz é forte, vai se recuperar. Quem não está bem é o velho. Dei de cara com seu Walter quando entrei no quarto.
— E ele?
— Fulo da vida. Não gostou nada de ver o Gumercindo algemado na cama. Disse que era uma pouca vergonha. Quase me expulsou de lá.
Juan pegou sua tigela de arroz com leite e deu uma colherada. Foi Dora quem continuou a conversa:
— Não gosto desse homem. Não sei, ele nunca me pareceu boa coisa. Não compro nada nas vendas dele.
— E coisa boa ele não é — Polydoro falou com a boca cheia. — Por isso acho que o nosso João aqui tem que se cuidar por uns tempos.
— Não assusta a Dora, meu velho.
— Será que ele pode fazer alguma coisa? — Dora perguntou, já assustada.
— Acho que não, ainda mais agora que vai sofrer processo. Nós pegamos o filho dele com a boca na botija.
— Acha, não tem certeza.
Polydoro raspou a tigela, fazendo barulho, depois pediu um pouco mais da sobremesa. Dora o serviu, olhos baixos, cara pensativa. Sem olhar para nenhum dos homens à mesa, ela disse:
— Hoje de noite tem carteado, não tem?
— Tem — Polydoro respondeu pigarreando em seguida.
Juan estendeu a tigela para a esposa em sinal de que também queria mais arroz com leite.
— Dora — ele disse —, não tem por que se preocupar. Não vai acontecer nada.
— É verdade, Dora. E se o Walter tiver que fazer alguma coisa contra alguém, vai ser contra o Mendonça, que se faz de amigo dele. A denúncia da carga veio lá da Arango & Primos. Uma hora dessas, o Walter fica sabendo que o Mendonça, e aquele irmão efeminado que o Mendonça tem, são traíras. E outra, ele não vai querer se encrencar mais querendo briga com gente da alfândega, do governo.
— Não sei — ela disse. — Hoje em dia não duvido de mais nada. Viram que mataram o padre de Santa Ana, aqui pertinho?
*
Após o cafezinho, servido na sala de estar decorada com louças e quadros, com um retrato do Dr. Aranha em destaque, Polydoro pensou que era hora de voltar para casa. Sua esposa estava passando uma temporada com os pais na capital, mas ele ainda queria repousar um pouco antes do carteado. Pediu licença e levantou. Despediu-se da anfitriã e foi acompanhado por Juan até a porta.
— No fundo, acho que a Dora tem razão — ele disse já no jardim da frente. — Talvez seja melhor não dar as caras no jogo hoje, João.
Juan balançou a cabeça, um esboço de sorriso nos lábios.
— Não vou deixar de fazer o que eu quero por causa do Walter Gutierrez.
— Tudo bem, eu já esperava algo assim mesmo. Não sei se é coragem ou se é cabeça dura.
— Um pouco de cada. E também não precisava ter contado pra Dora sobre o Mendonça. Não gosto que ela fique sabendo dessas coisas.
— Desculpe, João. Eu só queria deixar a Dora mais tranquila. Mas, no fim das contas, nem sei se não era melhor espalhar por aí que o Mendonça dedurou a carga do Walter em troca de uma liberação de mercadoria por baixo dos panos.
— Isso aí sou eu quem não gosta de ficar sabendo, meu velho.
— Tudo bem, João. Tudo bem. Não está mais aqui quem falou.
— Nos vemos no seu Nabuco então?
Polydoro assentiu e colocou o chapéu, estendendo a mão livre para Juan. Ao virar as costas para ir embora, disse ao amigo:
— Só vê se não sai por aí sem teu 38, João.
IV
Sábado ao fim da tarde
Juan estacionou o Ford Tudor 1929 na frente do Narval. O carro pertencia à Diretoria-Geral da Fazenda Nacional, mas Juan costumava usá-lo nos fins de semana também.
O Narval era o ponto preferido para as jogatinas entre o pessoal mais modesto da cidade. O dono do lugar, seu Nabuco, tinha décadas no ofício e sabia de tudo o que acontecia na região. Muitos diziam até que ele era o principal responsável por espalhar a maioria dos boatos que corriam por lá. Mesmo assim, era um velho muito bem quisto.
Logo na entrada, Juan viu uma figura estranha ao ambiente do Narval. Estevão Arango, irmão de Mendonça, vestindo terno e chapéu brancos, fumava um cigarro fino encostado na parede. Juan se aproximou e o cumprimentou com um aceno. Estevão coçou o bigode bem aparado e retribuiu a saudação abanando discretamente com a mão que segurava o cigarro.
Dentro do Narval, a fumaceira típica dos salões de jogo envolvia a algazarra dos frequentadores. Juan olhou para os lados, procurando os conhecidos. De relance, observou um forasteiro, cara de poucos amigos, acompanhado por uma garrafa de canha na mesa mais isolada do bar. Logo, ouviu um grito atrás dele:
— Aí está o homem — disse Polydoro, ainda debaixo da soleira.
— Chegou o pior parceiro de carteado na cidade — disse Juan.
Os dois foram até o balcão, pediram uma garrafa e dois copos, depois procuraram uma mesa. Entraram em um jogo de canastra com Alcemir, um peão de estância, e seu Rivadavia, um velho meio bronco.
Depois de algumas rodadas, quase todas vencidas por Juan e Polydoro, o humor do velho Rivadavia estava dos piores. Cuspia xingamentos e criticava o parceiro, Alcemir, que era meio distraído. As risadas e provocações dos adversários só agravavam a situação.
Jogaram mais uma mão. Polydoro bateu a primeira vez com facilidade e pegou o “morto”. Ele e o parceiro não demoraram a fazer uma canastra real e duas sujas. As cartas vinham que era uma beleza. Sorriso largo no rosto, Juan deu a batida final.
— Puta merda — gritou seu Rivadavia. Então, em um acesso de raiva, o velho rasgou suas cartas e saiu da mesa reclamando da vida. Os remanescentes se olharam e caíram na risada.
— Depois dessa, até vou passar na casinha — Juan disse, já levantando.
Era noite alta quando Juan saiu pela porta dos fundos. Meio tonto com a fumaça e a bebida, recebeu com gosto a lufada de ar fresco que o vento trazia do campo. Esticou os braços e as pernas e foi até a casinha. Depois de fazer o que precisava, saiu. Alguém o esperava nas sombras do lado de fora.
Por instinto, Juan pousou a mão sobre o revólver.
— Calma homem, venho como amigo.
Na luz da lua, Juan reconheceu Estevão Arango, que se aproximou.
— Não é muito recomendável aparecer assim desse jeito, seu Estevão. Nos tempos como os de hoje, arrisca levar uma bala.
— Eu sei, homem. Mas não queria que me vissem falando contigo.
Juan olhou para os lados. Podia sentir o perfume meio adocicado de Estevão, o que na sua condição atual, causava certo enjoo.
— Pois diga, algum problema?
Estevão ficou ainda mais perto de Juan. Quase encostou os lábios no ouvido dele. Sussurrou:
— O forasteiro carrancudo e de bigode, aquele que está bebendo sozinho no canto desse boteco asqueroso.
— O que tem ele?
— Ele veio aqui pra te matar.
Mal terminou de falar e Estevão se afastou, acenando com o chapéu branco. Ele deu a volta e saiu apressado. Juan ficou parado, reconstruindo na cabeça o rosto do forasteiro que viu ao entrar no Narval. Seu pensamento foi cortado pelo ronco de um motor. Viu Estevão em seu carro sumindo na noite, envolto em poeira. Não entendia o que acabara de acontecer. Ficou se perguntando o que Estevão ganhava dando aquele aviso. E se alguém tinha mesmo enviado um matador, só poderia ter sido Mendonça, para Estevão ter ficado sabendo. Por que ele iria trair próprio irmão?
Juan secou o suor da testa na manga da camisa e ajeitou o chapéu. Tirou o revólver do coldre, abriu o tambor e verificou as balas. O tom prateado do metal era bonito à noite. Guardou o revólver e ficou pensando no forasteiro. Ele tinha bigode espesso, e prendia a melena com uma espécie de faixa. Os olhos pareciam não ter vida. Pela aparência geral, devia ser um matador do tipo que se encontra do outro lado do rio. Do tipo que fez fama nas revoluções e escaramuças que sacudiram o estado tantas vezes. Degoladores, torturadores, castradores. Em 1923, Juan conheceu vários deles. Não havia o que fazer, enfrentaria o forasteiro se fosse preciso.
Ao voltar pra o salão, uma surpresa, o homem de bigode estava à mesa no lugar deixado vago por seu Rivadavia. Juan puxou a cadeira e sentou enquanto Alcemir dava as cartas de um baralho novo fornecido por Nabuco. Encarou o novo integrante da mesa e acendeu um palheiro. Após exalar a fumaça da primeira tragada, disse, apontando o forasteiro com o cigarro:
— Nunca vi o amigo por essas bandas. É novo aqui?
— Si.
V
Domingo de madrugada
O jogo seguiu noite adentro. Juan e Polydoro mantiveram a parceria vencedora, embora o forasteiro fosse bom jogador. Para o azar dele, o peão Alcemir ficava cada vez pior à medida que as horas, e a bebida, passavam.
Por fim, o peão desistiu. Alcemir levantou e se despediu cordialmente dos companheiros de mesa. Ao sair, levou consigo outros frequentadores do salão, que provavelmente tomaram o movimento como incentivo para irem embora também.
Apenas Juan, Polydoro e o forasteiro permaneciam jogando. Exceto por seu Nabuco, apoiado no balcão e quase dormindo em pé, não havia ninguém mais no bar. Juan, passando um cigarro palheiro para o canto da boca, começou a embaralhar as cartas e disse:
— Não gosto muito de jogar entre três, mas é o que temos.
— E a noite é uma criança — Polydoro completou, esfregando as mãos.
— E nosso companheiro de mesa parece ser daqueles de fé. O amigo gosta de uma jogatina, não é mesmo?
O forasteiro abriu um sorriso e respondeu depois de beber um gole de aguardente:
— Y hay algo mejor que juego, caña y mujeres?
— Verdade, amigo, verdade. Mas diga, não me lembro de ter ouvido o teu nome.
— El nombre es Chaco, señor.
Juan ficou pensativo. Não parava de embaralhar as cartas e o barulho que elas faziam foi o único som ouvido no salão por alguns segundos.
— Pero tu nombre es João — Chaco rompeu o silêncio.
— Juan, na verdade. De los Santos. Mas essa é uma longa história.
— Me gustam las histórias.
— Talvez eu venha das mesmas bandas que o amigo, mas vim pra cá muito cedo, ainda criança.
— Vengo de uma tierra de hombres duros.
— Não muito diferente daqui. Pensando bem, não fosse o rio, acho que seria tudo a mesma terra.
Polydoro, com um jeito meio impaciente, intrometeu-se:
— Vai dar essas cartas hoje ainda, João?
Na mesma hora, Juan começou a distribuir as cartas. Olhava Chaco nos olhos, e este não demonstrava nada por trás do rosto impassível. Cada jogador recebeu suas onze cartas e o morto foi deixado de lado.
— Eu compro — disse Polydoro, iniciando a partida.
Chaco ainda organizava as cartas na mão quando disse:
— Pero y la história, Juan, já acabou?
— Não tem muito que dizer — Juan respondeu comprando uma carta do monte e logo descartando outra no lixo. — Vim pra cá, cresci, arranjei trabalho, mudei de nome, me meti numa guerra, arranjei outro trabalho, casei, tive duas filhas.
— Guerra?
— Pois sim. Em 23. O amigo deve ter ouvido falar.
— Si, como no?
— Mas não gosto muito de lembrar.
— Y si te digo que yo estava lá com los de pañuelo colorado?
— Eu vou dizer que vocês levaram uma surra.
Chaco não disse nada, só abriu um sorriso com jeito debochado. Juan continuou:
— O amigo já ouviu uma cavalhada disparando em cima de uma ponte de madeira? Lembro bem desse barulho, ele veio antes do maior tiroteio que vi na vida. Os de lenço vermelho, como o amigo diz, cruzaram essa ponte lá onde eu morava. Aí fincaram pé do outro lado, pra que a gente não avançasse. Foi quando começou a troca de tiros. O Dr. Aranha, meu comandante, levou um balaço na perna. Passou um tempo, e o lado de lá bateu em retirada de vez. Depois que baixou a poeira e a fumaça do tiroteio, senti aquele cheiro de sangue misturado com o da água e o dos cavalos.
Juan fechou o punho e bateu três vezes no tampo de madeira da mesa. Encarou Chaco nos olhos mais uma vez, olhos de assassino. Nenhum dos homens parecia disposto a continuar a conversa. Chaco pousos as cartas na mesa viradas para baixo, e colocou as mãos sobre o colo, no que foi acompanhado por Juan. Então, ambos tiveram a atenção atraída pela voz de Polydoro:
— Sabe — ele disse, mascando o cigarro —, uma vez eu estava pescando aqui no rio mesmo, mas fui mal preparado, levei pouca isca. Quando vi, não tinha mais nada. Fiquei com preguiça de voltar e pegar mais, então fiquei por lá mesmo bebendo uma cachaça da boa que o meu sogro me deu. Bueno, lá pelas tantas, vi um movimento no mato. Era uma cobra com uma perereca na boca! Aí eu pensei, uma perninha de perereca dá pra fazer de isca. Peguei a cachaça em uma mão e fui devagarzinho até a cobra. Cheguei na frente da bichana, era uma cruzeira braba, e puxei a perereca. Quando ela deu o bote, enfiei a garrafa de cachaça na goela dela. A coitada saiu disparando. Desmantelei a perereca, botei um pedaço no anzol e voltei a pescar. Não deu meia hora e senti umas cutucadas nas costas.
Polydoro fez uma pausa e a mesa ficou em silêncio. Como ninguém falava nada, Chaco perguntou:
— Y o que era?
— Era a cobra, com duas pererecas na boca, querendo trocar por cachaça.
Os três homens gargalharam com vontade. Em meio aos risos, Chaco puxou seu revólver. No mesmo instante, um estrondo, e o tampo da mesa explodiu bem na frente do forasteiro, que foi jogado para trás.
Juan levantou, o cano do revólver ainda fumegando. Polydoro cuspiu o cigarro e saltou para o lado do amigo. Os dois deram alguns passos até Chaco, estendido no chão, os pés sobre o encosto da cadeira virada.
— Morreu? — Perguntou seu Nabuco espiando agachado atrás do balcão, para onde saltara ao acordar com o barulho do tiro.
Juan encarou Chaco. O homem tinha um buraco no peito, mas seus olhos ainda brilhavam com vida. O forasteiro pareceu sorrir enquanto o sangue escorria pela boca. Então, ele arregalou os olhos e expirou.
— Agora sim — disse Polydoro.
— Mas que tragédia — seu Nabuco disse. — O que foi isso?
— Tragédia ia ser se o João é que tivesse morrido. Só pode ter sido coisa do Walter Gutierrez.
— É, mas o Estevão Arango me avisou desse pistoleiro — disse Juan. — Então o Mendonça deve ter algo com isso.
Polydoro abriu um sorriso.
— Seu Nabuco — disse Polydoro —, o senhor sabia que aquele pilantra do Mendonça foi quem dedurou a carga do Walter Gutierrez que pegamos lá no rio?
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Muito obrigado pela atenção.
Até a próxima,
Cesar
Gosto do tom pessoal, de conversa de boteco, das suas cartas perigosas. Como leitora, voto por mantê-las