A última carta, “O Italiano”, gerou pedidos de mais textos sobre cinema. O César Almeida ficou feliz :) Então decidi resgatar um perfil do cineasta chinês King Hu que ele escreveu em 2013 para o Zinematógrafo, fanzine portoalegrense de cinema. Espero que gostem.
King Hu, o Grande Mestre Desconhecido
César Almeida
Ainda pouco conhecido no Brasil, King Hu foi um cineasta revolucionário, e um dos mais influentes realizadores a surgir no cenário da indústria de Hong Kong durante os anos 1960. Sua carreira atingiu grandes êxitos artísticos, e alguns sucessos comerciais, embora nunca tenha alcançado a popularidade de diretores como Chang Cheh (1923 – 2002) e Lau Kar-leung (1934 – 2013). Apesar disso, sua marca pode ser sentida até hoje em obras de enorme repercussão internacional como O Tigre e o Dragão (Crouching Tiger, Hidden Dragon, 2000), de Ang Lee, e O Clã das Adagas Voadoras (House of Flying Daggers, 2004), de Zhang Yimou.
Hu Jinquan (mais tarde “King”) nasceu em Pequim, China, no ano de 1932. Sua família possuía boa posição social, o avô chegou a ser governador da província de Henan nos anos finais da Dinastia Qing, e isso possibilitou bons estudos em uma escola de arte. Os tempos turbulentos fizeram a família migrar para Hong Kong em 1949, pouco antes da proclamação da República Popular da China.
À procura de trabalho, Hu acabou entrando no mundo do cinema em 1951, como assistente de direção de arte. Seu envolvimento com a indústria se aprofundou e, por volta de 1954, já contava com diversas funções em seu currículo: ator, diretor de arte, roteirista e diretor assistente. A grande virada em sua carreira veio em 1958, quando entrou para a lendária companhia Shaw Brothers.
Estreou na direção com Sons of the Good Earth (Da di er nu), em 1965, um drama de guerra passado durante os anos da ocupação japonesa na China. Porém, foi apenas com sua obra seguinte, em 1966, que King Hu começou a fazer história.
Na primeira metade da década de 1960, a indústria de Hong Kong assistiu uma tímida retomada do Wuxia, gênero mítico da ficção chinesa que aborda as aventuras de artistas marciais. A refilmagem, em 1965, do clássico mudo The Burning of the Red Lotus Temple, teve algum destaque, levando a Shaw a investir mais no gênero. Chegou assim a vez de Hu brilhar.
Unindo elementos do cinema japonês (forte influência de Kurosawa) com técnicas ocidentais e a estética da opera chinesa, Hu desenvolveu O Grande Mestre Beberrão (Da Zui Xia / Come Drink With Me). Este filme representa para o cinema de Artes Marciais o mesmo que Por um Punhado de Dólares (Per un Pugno di Dollari, 1964), do mestre Sergio Leone, representa para o western italiano: o começo de uma nova era. Assim como Leone criou a estética do que veio a ser chamado de Spaghetti Western, Hu deu nova cara ao cinema marcial chinês com a musicalidade das coreografias de luta, a edição dinâmica e a violência estilizada.
Em O Grande Mestre Beberrão, o filho do governador da província é sequestrado por bandoleiros e a irmã dele, uma heroína conhecida como Andorinha Dourada (Cheng Pei-pei), vai ao seu resgate. No decorrer da trama, Andorinha Dourada recebe a ajuda do misterioso mestre bêbado Fan Da-Pei (Yueh Hua), que tem suas próprias contas a acertar com os vilões.
Esta obra de King Hu impulsionou uma nova safra de Wuxia e o consagrou como o primeiro grande diretor do gênero. O sucesso também alçou ao estrelato a atriz Cheng Pei-pei, que viria a interpretar várias espadachins ao longo da década seguinte, e sedimentou a preferência do diretor por apresentar heroínas em seus filmes, algo pouco comum em um gênero tão masculinizado.
Apesar do sucesso, o rompimento com a Shaw Brothers foi inevitável. Os métodos de produção dos irmãos Shaw eram extremamente conservadores, e Hu desejava ousar. Desse modo, ele partiu para Taiwan em busca de maior liberdade na criação.
O primeiro filme que realizou em Taiwan, Dragon Gate Inn (Long Men Kezhan, 1967), é geralmente considerado como sua obra-prima. Mais uma vez, Hu bebeu fundo na fonte do western americano. As paisagens desérticas capturadas ao melhor estilo John Ford emolduram a história de um grupo de heróis (encabeçados por Shih Chun e Polly Shang-Kwan) que luta para salvar a vida dos filhos sobreviventes de um general traído e assassinado. A musicalidade, embora não esteja presente de forma explícita como em O Grande Mestre Beberrão, se faz sentir nas belas coreografias e nos movimentos de câmera intricados.
Esse seu segundo Wuxia quebrou recordes de bilheteria no sudeste da Ásia, e permanece como objeto de culto até hoje. Teve duas refilmagens, New Dragon Gate Inn (1992) e The Flying Swords of Dragon Gate (2011), além de ser homenageado em Goodbye, Dragon Inn (2003). Vale notar que boa parte do elenco reunido aqui, incluindo Hsu Feng, Pai Ying e Sammo Hung, tornou-se uma espécie de trupe fiel do diretor, aparecendo em quase todos seus filmes seguintes.
A Touch Of Zen* (Xia Nu, 1971) compete com Dragon Gate Inn pelo título de obra-prima de Hu. Com mais de três horas de duração (há uma versão dividida em duas partes), A Touch of Zen tem forte temática budista e muitas vezes beira o fantástico. Exaltado pelo excelente trabalho com fotografia, edição e efeitos especiais, o filme recebeu o Grande Prêmio Técnico no Festival de Cannes, além de ter sido indicado à Palma de Ouro.
Entretanto, A Touch of Zen não teve bom retorno financeiro. A longa duração, o ritmo lento e as pretensões místicas e artísticas da obra dificultaram sua assimilação pelo público, já a essa altura hipnotizado pelo surgimento de Bruce Lee. A partir desse ponto, os filmes de Hu não mais atraíram grande atenção.
Em 1973, ele produziu dois filmes ao mesmo tempo, mas lançou-os com dois anos de diferença. O primeiro deles, The Fate of Lee Khan (Ying chun ge zhi Fengbo), é uma tentativa bem sucedida de revisitar os elementos que fizeram de Dragon Gate Inn um clássico. Esse filme contou também com a participação de Angela Mao, talvez a maior estrela feminina do cinema de Artes Marciais. O segundo filme, The Valiant Ones (Zhong lie tu, lançado em 1975), tem mais similaridades com o estilo “derramamento de sangue heroico” de Chang Cheh do que com as obras anteriores de Hu. Um belo filme de ação (coreografado por Sammo Hung), mas sem maiores atrativos.
Com dificuldades para financiar seus filmes, Hu somente voltou à ativa seis anos mais tarde com duas produções sul-coreanas. Distanciado das histórias de Artes Marciais, realizou Raining in the Mountain (Kong shan ling yu, 1979) e Legend of the Mountains (Shan zhong zhuan qi 1979), uma obra dramática e outra de cunho fantástico. A década de 1980 mostrou-se ainda mais difícil, com poucos e obscuros trabalhos. No início dos anos 1990, o diretor ensaiou um renascimento com The Swordsman (Xiao ao jiang hu, 1990), porém, um desentendimento com os produtores afastaram Hu do projeto, que foi terminado por outros nomes. Dirigiu seu último filme, Painted Skin (Hua pi zhi: Yin yang fa wang), outra obra de tons fantásticos, em 1993. King Hu faleceu em 1997.
* A Touch Of Zen (Xia Nu, 1971) foi lançado em DVD no Brasil anos depois com o inexplicável título A Tocha de Zen.
Total à espera de mais!