Demorou bastante pra vir essa Carta, hein?
Mas você gosta de cobrar, né? Pois é, manter uma periodicidade tem sido bem complicado. As dificuldades da vida ficam no caminho. Os últimos meses não foram lá dos mais tranquilos, mas também não quero ficar reclamando aqui.
Pode reclamar se quiser, todo mundo tem direito.
Ah, o Raul Seixas já fez isso melhor do que eu jamais farei na vida. E, como o próprio Raul percebeu em outro momento, também não adianta ficar reclamando, “a onda tá certa”.
Cesar, você andou fumando alguma coisa?
Não recentemente. Mas vamos falar de literatura, não andei fumando, mas andei meio inspirado por esses dias. Até trouxe dois minicontos inéditos para quem lê minhas Cartas Perigosas.
Ah, quer dizer que dessa vez não vai ter textos de trocentos anos atrás?
Você está insinuando que só publico coisas antigas aqui?
Não, de forma alguma (HAHAHAHA).
Vou fingir que não entendi e falar dos contos.
Vai lá.
Com sua licença. Umas semanas atrás, estava ouvindo música num desses serviços de streaming e, findado o álbum que tinha escolhido, começou uma seleção aleatória. Entre as primeiras canções, tocou “Amanda”, interpretada por Waylon Jennings. Não conhecia ainda essa música, embora goste bastante do Outlaw Country. Aquele refrão cheio de culpa ficou martelando na minha cabeça por um bom tempo. Eu saía pra caminhar e ficava cantarolando pela rua (tenho essa mania, quem vê deve pensar que sou doido). Numa dessas caminhadas, imaginei a historinha que vocês podem ler a seguir…
Amanda
Cesar Alcázar
Se pelo menos aquela maldita música não estivesse tocando no rádio. O posto de gasolina ficando cada vez mais perto, e aquele refrão nos meus ouvidos: Amandaaaaa, light of my life, fate should have made you a gentleman's wife*. E eu nem gosto dessa porcaria de country. Sou do interior, mas não sou nenhum caipira. O problema é o seguinte, a minha Amanda também merecia um cara melhor do que eu. Alguém com mais grana e que não fizesse tanta merda. Aí aquela letra me bateu fundo.
Estacionei o carro e pedi pro frentista encher o tanque. Depois, entrei na loja de conveniências, peguei um maço de cigarro e fiquei olhando a velhinha no caixa. Devia ter uns 100 anos. Sei lá. O sujeito que abastecia o carro não parecia grande coisa, um magrelo com a cara suja de graxa. Quando a velha abriu a caixa-registradora, puxei meu .38 e enfiei na cara dela. Mandei passar tudo. E, olha, tinha bastante coisa, fiquei surpreso. Dessa vez ia levar a Amanda pra jantar num lugar fino e com vestido novo.
Saí correndo e segurando a grana em uma das mãos, o revólver na outra. Dei de cara com uma viatura da polícia abastecendo também. O guarda me olhou e já puxou o trabuco. Só ouvi um “para aí, safado”! Congelei. Então senti uma cutucada nas costas. Era a senhorinha do caixa com uma espingarda mais velha que ela.
Quando saí da minha audiência, uns meses depois, a Amanda me abanou com a cara toda inchada e molhada de lágrimas. Coitadinha. Ah, luz da minha vida, o destino devia ter te encontrado coisa melhor, eu sei. Bom, peguei dois anos só, mas dois anos em cana são uma eternidade. O pior de tudo, ela escreveu uma carta dizendo que vai me esperar.
* composição de Bob McDill.
Você gosta bastante de usar músicas nas tuas histórias, né?
Gosto. Meu próximo livro, por exemplo, tem como título o nome de uma canção do Tom Waits: “Espero que eu não me apaixone por você” (aguardem mais novidades 😉). E a música foi muito importante na concepção dos contos do livro “A Culpa é da Noite”, tanto que ele tem uma playlist que pode ser ouvida aqui. Mas, claro, também acontecem algumas coisas aleatórias no dia a dia que acabam inspirando histórias e…
Ih, vai entrar nessas de autoficção, é?
Cara, você é muito chato. Deixa eu terminar.
Desculpa.
Tudo bem. Na próxima carta eu publico mais dos teus escritos de cinema, estou sentindo que esse é o problema.
Imagina, tô de boas…
Então vou continuar. Andei tendo uns problemas pra dormir nos últimos meses (olha a reclamação aí de novo) e, numa dessas madrugadas de insônia, tocou o telefone. Atendi e ouvi uma mulher aos prantos dizer “Pai… pai…”. Apenas respondi “não tenho filha, moça”, e desligaram. Depois fiquei imaginando o que poderia ter acontecido se continuasse a conversa. “Cidade de Vidro”, do Paul Auster, começa com uma ligação estranha no meio da noite que leva o protagonista, um escritor, a investigar um caso ainda mais estranho. Já meu modesto eu imaginou uma história bem curtinha, que publico aqui.
Engano
Cesar Alcázar
O telefone tocou às cinco e meia da manhã, o mesmo horário que, dez dias antes, sua então namorada enviou as mensagens terminando tudo. Estava acordado. Há dias despertava assustado por volta das cinco e não dormia mais. Rolou na cama pensando em mandar desligar a linha do fixo, mas atendeu mesmo assim.
– Pai? Pai?
A voz de mulher chorando era convincente. Claro, golpistas precisam ser bons atores. Como não tinha filhos, decidiu que seria uma boa oportunidade para espantar o tédio das horas de insônia.
– O que foi minha filha? O que aconteceu?
– Pai, eles querem dez mil, dez mil agora. Eu tô muito assustada, pai.
Imagens de filmes com heróis durões assistidos na madrugada passaram por sua cabeça. Tentou soar como o dublador do Liam Neeson.
– Minha filha, deixa eu falar com esses desgraçados.
– Não pai, não dá. Faz o que eu tô dizendo.
– Filha, diz pra esses caras que eles se meteram com a família errada. Se tocarem num fio de cabelo teu, eu mato todo mundo, um por um. Avisa esses vagabundos que amanhã o pessoal da Jaú vai dar cabo deles.
Desligaram. Foi divertido. Tentou ajeitar o corpo na cama e riu. O sono não veio.
Pela manhã, a caminho do trabalho, ouviu no rádio sobre um tiroteio com cinco mortos em um bar da Vila Jaú. Nem sabia da existência de uma Vila Jaú na cidade. Decidiu mandar desligar de vez a linha do fixo.
Quer adquirir meus livros? Assistir entrevistas? Acompanhar minhas redes? Só clicar aqui.
Gostaria de apoiar Cartas Perigosas? Faça uma contribuição via chave pix sartanawest@gmail.com
Muito obrigado pela atenção.
Até a próxima,
Cesar
gostei muito dos contos, primo! ❤️