06. A Noiva
Olha, que beleza, a nova edição de Cartas Perigosas nem atrasou tanto. Como se sente?
Firme que nem palanque em banhado. Pra falar a verdade, tô só o pó da rabiola. Que ano, hein?
Cesar, é junho.
Eu sei. Mas esse ano mais parece uma luta de 12 rounds com o Muhammad Ali.
Pelo menos tenho ouvido falar do seu livro novo. Não é bom?
Ah, sim, “Espero que eu não me apaixone por você” está chegando! Mas depois falo mais sobre isso numa carta extra.
Que respostas curtas. Acho que você precisa de férias.
Não me diga.
Então vou assumir essa edição, ok?
Por favor.
Na edição anterior você mencionou mesmo que teria mais cinema nessa.
Verdade.
Beleza, vá descansar um pouquinho.
Obrigado.
Quem vos escreve agora é Cesar Almeida, autor de Cemitério Perdido dos Filmes B. Quero aproveitar a canseira do dono dessa newsletter para compartilhar com vocês um texto que gosto bastante. Sou um apaixonado pelo Horror Gótico britânico dos anos 1950 e 1960, em especial pelas produções da lendária Hammer Films. Foi com muita alegria que recebi o convite para escrever sobre “As noivas do vampiro”, de Terence Fisher, um dos 30 títulos exibidos na mostra “Estúdio Hammer – A Fantástica Fábrica de Horror”, promovida pelo Centro Cultural Banco do Brasil, e que aconteceu nas cidades de Brasília, São Paulo e Rio de Janeiro entre o fim de 2020 e o início de 2021. O texto a seguir foi publicado originalmente no catálogo da mostra (quem quiser ler o catálogo completo, pode clicar aqui). Espero que gostem :)>
As noivas do vampiro
(THE BRIDES OF DRACULA, 1960, 85min)
Por Cesar Almeida
Uma carruagem atravessa em desabalada correria as paisagens lúgubres da Transilvânia. Sua única passageira viaja aterrorizada. Uma narração avisa o espectador de que, embora o século XIX esteja chegando ao fim, a magia e a feitiçaria ainda imperam na região. O Conde Dracula, rei dos vampiros, está morto. Seus discípulos, por outro lado, continuam espalhando a praga do vampirismo pelo mundo. Assim, com um ritmo alucinante e uma atmosfera sombria perfeita, tem início As noivas do vampiro, sem sombra de dúvida um dos maiores clássicos da Hammer Film Productions e do Horror Gótico cinematográfico.
Em 1958, o sucesso estrondoso de O vampiro da noite (Horror of Dracula), devido em parte à presença icônica de Christopher Lee no papel título, consolidou uma nova era de sangue vermelho nas telas após o êxito de A maldição de Frankenstein (The curse of Frankenstein) no ano anterior. O público parecia ávido pela combinação de cores vibrantes e toques de sensualidade oferecida pela Hammer, e a velha produtora britânica precisava aproveitar o novo filão. Nos primeiros meses de 1959, o produtor Anthony Hinds confiou ao roteirista Jimmy Sangster a missão de escrever uma continuação para a saga de Drácula.
Sangster entregou um roteiro intitulado Disciple of Dracula, no qual o Barão Meinster, outro vampiro aristocrático, caça duas jovens estudantes inglesas em uma escola de moças. Pouco depois, Peter Bryan, responsável pela adaptação da Hammer de O Cão dos Baskervilles (The Hound of the Baskervilles), foi chamado para revisar a história. Bryan introduziu o Dr. Van Helsing na trama, vivido com garra por Peter Cushing no filme original. Ao contrário da lenda mais recorrente, não há confirmação de que Christopher Lee tenha sido convidado a repetir o papel de Conde Dracula, embora o roteiro inicial de Jimmy Sangster apresentasse o personagem.
Peter Cushing, então no ápice da carreira, não gostou do roteiro de Sangster/Bryan, principalmente do seu final, que mostrava o Dr. Van Helsing invocando uma revoada de morcegos através da feitiçaria para destruir o Barão Meinster. Segundo Cushing, e com toda a razão, isso destoava da forma como seu personagem fora concebido. Outros autores, incluindo até mesmo o produtor Anthony Hinds, fizeram ainda mais alterações no roteiro para agradar Cushing (o que talvez explique as várias pontas soltas na história, porém, o resultado final da produção é a prova de que um roteiro inconsistente nem sempre gera um filme ruim).
Problemas superados, e com a segurança do mestre Terence Fisher na cadeira de diretor, a produção do agora renomeado As noivas do vampiro (The Brides of Dracula) seguiu em frente. Filmado entre janeiro e março de 1960 nos estúdios Bray, e com locações externas no Black Park Country Park em Wexham, condado de Buckinghamshire, Brides of Dracula teve sua premiere em Londres no dia 2 de julho, chegando aos cinemas de todo o país no mês seguinte.
O filme começa acompanhando Marianne Danielle (Yvonne Monlaur), uma jovem parisiense que está viajando para o leste europeu com a intenção de assumir um cargo de professora em uma escola para moças. A carruagem que a transporta faz uma parada em um vilarejo sombrio, populado por gente rude e supersticiosa. É neste cenário de horror que Marianne se vê abandonada quando sua carruagem parte sem avisá-la. Então, a jovem professora é acolhida pela Baronesa Meinster (Martita Hunt), uma mulher misteriosa que parece despertar o temor e a antipatia dos habitantes locais. Hospedada no castelo da família Meinster, Marianne descobre que o filho da baronesa é mantido prisioneiro, presumidamente por ser insano. Mas ao encontrar o Barão Meinster (David Peel) acorrentado como um animal, ela se compadece da situação e decide ajudá-lo. O que a moça não sabe é que está libertando um vampiro perigoso. Logo, como uma praga, o Barão Meinster começa a atacar garotas do já assustado vilarejo. Por sorte, o Dr. Van Helsing (Peter Cushing) havia sido convocado pelo padre local para investigar a ação de vampiros na cidade. Van Helsing percebe que Marianne se tornou o principal alvo do vampiro e tenta protegê-la ao mesmo tempo em que caça o monstro e seus acólitos.
Dirigido por Terence Fisher com maestria habitual, As noivas do vampiro é uma verdadeira obra-prima do Horror Gótico, embora apresente algumas falhas. Fisher, cineasta já veterano em 1960, vinha de uma série de parcerias de sucesso com a Hammer, criando releituras modernas e inovadoras para histórias contadas inúmeras vezes nas décadas anteriores, estabelecendo assim novas convenções para o cinema de Horror. Definição esta que o cineasta não apreciava nem um pouco: “eu me oponho a que meus filmes sejam chamados de Horror”, disse certa vez, “prefiro que meu trabalho seja conhecido como macabro”. Ele também tinha uma preferência por chamar o gênero de “contos de fadas para adultos”. Mesmo trabalhando com orçamentos apertados, Fisher encontrou nas produções da Hammer o veículo ideal para expressar suas crenças pessoais, desenvolvendo uma abordagem própria como diretor (o que só foi reconhecido muito tempo após sua morte em 1980).
Em As noivas do vampiro, Fisher investe nos ambientes escuros e nas cenas noturnas, contrastando com as sequências bem iluminadas de suas abras anteriores, como o confronto entre Dracula e Van Helsing no final de O vampiro da noite, por exemplo. A diferença de abordagem no tratamento da iluminação vai além de uma questão visual: se em sua primeira obra vampiresca a luz surge como salvação, aqui uma sombra tem impacto decisivo no desfecho da trama.
Fisher era habilidoso na construção do suspense, omitindo a princípio detalhes que podiam ser mais chocantes para então pegar o espectador desprevenido com uma cena explícita. Dessa forma, ele criou alguns dos grandes momentos arrepiantes de sua carreira: Greta (Freda Jackson), como se fizesse um parto, ajuda uma vampira recém transformada a sair da tumba; Marianne, velando o corpo de uma amiga morta, testemunha a “ressurreição” da mulher; e o Dr. Van Helsing, no ponto alto do filme, usa seus conhecimentos científicos e religiosos para tratar a mordida de vampiro que pode transformá-lo no monstro que tanto combate.
O roteiro oferecia ao cineasta uma oportunidade de lidar com temas que o interessavam, como a sedução do mal (evidente na relação ambígua entre a heroína Marianne e o vampiro) e a união de racionalismo (ciência) e misticismo (representado pelas crenças cristãs) na batalha contra forças sobrenaturais. A visão de mundo através do cristianismo permeia sua obra, tanto que o autor Paul Leggett, no livro Terence Fisher: Horror, Myth and Religion, chega a considerá-lo um apologista cristão na linha de escritores como C.S. Lewis.
É importante destacar também outros aspectos visuais de As noivas do vampiro, como a imponência dos cenários de Bernard Robinson, quase todos reutilizados de outras produções da Hammer, mas com modificações inteligentes, além das florestas sombrias e da fotografia espetacular de Jack Asher, criador de uma atmosfera única, muitas vezes imitada e nunca alcançada.
Compensando a ausência de Christopher Lee, um ótimo elenco foi reunido para esta continuação, a começar pela presença de Peter Cushing, um dos maiores atores de sua época, capaz de se entregar por completo em qualquer papel que interpretava. O heroico Van Helsing de Cushing é representado de maneira quase divina, sempre acompanhado de uma trilha sonora de tom celestial (composta por Malcolm Williamson). Mas se suas características de “guerreiro de Deus” foram amplificadas, Terence Fisher, em sintonia com seu interesse pela “sedução do mal”, destaca também uma faceta sádica no personagem, um prazer em caçar e matar os monstros. Nem o herói divino escapa de uma atração sombria: o sorriso de Van Helsing ao cravar a estaca no coração de uma vampira é um retrato desta figura um tanto contraditória, agora mais fiel à criação de Bram Stoker do que suas representações prévias. Cushing viria a interpretar Van Helsing em outras três ocasiões: Dracula no mundo da minissaia (Dracula A.D. 1972), Os ritos satânicos de Dracula (The Satanic Rites of Dracula) e A lenda dos 7 vampiros (The Legend of the 7 Golden Vampires). Surgidos nos primeiros anos de decadência da Hammer, nenhum destes filmes teve uma boa acolhida junto ao público.
Mas quem conduz a narrativa por todo o terço inicial da história é a atriz francesa Yvonne Monlaur, que tinha acabado de estrelar outro clássico britânico, Circo dos horrores (Circus of Horrors), ao lado de Anton Diffring e Donald Pleasence. É notório o fato de que a Hammer procurava escalar suas heroínas com base em atributos físicos, sem qualquer preocupação com talento (problema que se agravou nos anos 1970). Monlaur, entretanto, podia ter uma expressividade limitada, mas consegue uma interpretação convincente na pele da professora Marianne Danielle, mesmo que o roteiro irregular a obrigue a oscilar entre determinação e desamparo. Por outro lado, as visões um tanto conflitantes dos roteiristas quanto à personagem acabaram por dar a ela uma ambiguidade pouco comum em uma era dominada pelas donzelas em perigo unidimensionais.
O posto de vilão ficou a cargo do ator David Peel, então mais acostumado às produções para a TV, sem nenhum papel relevante no cinema. Apesar da tarefa ingrata de personificar um vampiro qualquer em um filme que exibe o nome Dracula no título, ele não decepciona. Como o Barão Meinster, Peel equilibra elegância aristocrática e uma pendência para o sadismo debaixo da falsa aparência de fragilidade. Mostrando-se um inimigo temível, seus duelos com Peter Cushing são memoráveis. Infelizmente, a maquiagem de monstro não lhe cai muito bem, mas Peel compensa a deficiência com a força da atuação.
Por fim, duas atrizes veteranas têm um desempenho marcante, roubando a cena em alguns momentos. Freda Jackson impressiona como Greta, a fiel empregada dos Meinster, uma personagem que, embora humana, consegue ser tão assustadora quanto os monstros aos quais serve. Martita Hunt, por sua vez, interpreta com sobriedade a Baronesa Meinster, mãe do vampiro. De porte imponente e misterioso, ela transmite uma aura sinistra e ao mesmo tempo trágica, despertando piedade quando transformada em morta-viva pelo próprio filho.
É curioso perceber que a trama de As noivas do vampiro, assim como aconteceu com outro filme britânico do mesmo ano, The City of the Dead (também conhecido como Horror Hotel), de John Llewellyn Moxey, segue uma estrutura semelhante a de Psicose (Psycho), clássico absoluto dirigido por Alfred Hitchcock e lançado um mês antes: a primeira meia hora é centralizada na heroína, que é obrigada a passar a noite em um lugar onde vive um assassino; apenas depois outros personagens são introduzidos e há uma investigação sobre a estadia problemática da heroína naquela noite. A diferença é que, na obra da Hammer, a protagonista inicial sobrevive à noite no castelo/hotel.
Enfim, a reunião de tantos elementos atrativos se provou um sucesso de público, cumprindo os objetivos comerciais de Anthony Hinds. Como de costume, a crítica da época não deu maior atenção ao trabalho do produtor e seus parceiros hoje lendários. Os tabloides dominicais da Inglaterra preferiram ressaltar a ausência de Christopher Lee e comentar sobre a suposta homossexualidade do ator David Peel, o que gerou alguma controvérsia (vale lembrar que a homossexualidade ainda era considerada crime na Inglaterra em 1960). Peel se aposentaria das telas no ano seguinte. A revista Motion Picture Exhibitor até foi elogiosa, destacando que “o sangue corre realmente vermelho” no filme. Nos Estados Unidos, a Daily Variety o considerou “tecnicamente bem feito e embelezado pela cor”, mas afirmou que ele poderia ter sido mais assustador caso fosse em preto e branco. Uma opinião peculiar, levando em conta que as cores fortes eram um dos principais atrativos das produções da Hammer, e que talvez evidencie uma postura conservadora por parte da revista. Já o New York Times, numa resenha breve e cheia de zombarias, acusou a obra de ser apenas uma repetição formulaica das histórias com vampiros “que gostam de afundar suas dentaduras superdimensionadas no pescoço de garotas bonitas”. Opinião semelhante à proferida pelo Jornal do Brasil (RJ) ao apontar uma “insistente preocupação de repetir argumento atrás de argumento” da produtora inglesa, “não trazendo nenhum aspecto novo ao tratamento dos jovens contaminados pelo vampirismo”.
A passagem do tempo se encarregou de dar ao filme, e a todo o panteão da Hammer, seu devido valor. As noivas do vampiro pode ter muitas falhas como o roteiro esburacado e alguns efeitos especiais que para a época já eram precários (e parecem ainda piores hoje). Contudo, a direção de Terence Fisher e o elenco encabeçado por Cushing compensam qualquer defeito que o filme possa ter, uma obra que continua fascinante mesmo após sessenta anos de seu lançamento.
Referências:
FELLNER, Chris. The Encyclopedia of Hammer Films. Londres: Rowman & Littlefield, 2019.
MEIKLE, Denis. A History of Horrors: The Rise and Fall of the House of Hammer. Plymouth: Scarecrow Press, 2009.
LEGGETT, Paul. Terence Fisher: Horror, Myth and Religion. Londres: McFarland & Company, 2002.
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Até a próxima,
Cesar